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Teorias sobre o Desenvolvimento Humano e a criança de 0 a 6 anos

...o primeiro gesto humano é o abraço.
Depois de sair ao mundo, no princípio de seus dias,
os bebês agitam os braços, como buscando alguém.
Eduardo Galeano

Professor(a), em seu trabalho diário com as crianças, você deve sempre se perguntar sobre como elas aprendem. Quais são as melhores intervenções para que elas ampliem seus conhecimentos? Que práticas são as mais adequadas para que elas aprendam?

Vários teóricos abordam a forma como a criança conhece, como amplia seu repertório de saberes e a importância de agirem ativamente sobre a realidade a fim de compreendê-la.
Diversos estudiosos da área da Psicologia dedicaram-se a pensar como as crianças e os seres humanos aprendem, conhecem e descobrem o novo, integrando o que já sabem com novos saberes.

Então vamos estudar alguns deles.

Jean Piaget nasceu em 1896, na Suíça, Europa. Filho de uma família com recursos, se interessou pelo estudo da Biologia e, mais tarde, da Psicologia. Veja no mapa a localização da Suíça, onde nasceu e trabalhou Piaget.

Em suas pesquisas na área da Psicologia, Piaget buscava responder a seguinte questão: como as pessoas passam de um estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento? Ou seja, como o adulto chega a pensar de modo hipotético e dedutivo, quer dizer, criando hipóteses sobre acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas ações antes de serem realizadas? Como a criança deixa de precisar dos sentidos (olfato, visão, tato etc.) ou da experiência direta com os objetos para conhecê-los, podendo fazer isto somente através da sua ação mental?
Pesquisando como a criança conhece o mundo e desenvolve-se, Piaget pretendia compreender como ela chega a pensar de modo adulto, lógico e racional. Nesse processo, investigou o desenvolvimento intelectual humano (o desenvolvimento da inteligência), dividindo-o em quatro grandes períodos: período sensório motor; período pré-operatório; período das operações concretas e período das operações abstratas (ou formais).
*       O período sensório-motor, que vai de 0 a mais ou menos 2 anos, é o período da inteligência prática, anterior à linguagem. Caracteriza-se pela ação do sujeito sobre o meio, tendo como recursos as sensações e os movimentos. O mundo é algo a experimentar e conhecer através dos órgãos do sentido e das ações físicas/corporais sobre os objetos.
Para Piaget, nesse período não há representações, ou seja, imagens mentais das coisas que cercam a criança. Podemos dizer que ela age sobre aquilo que lhe chega nas mãos, o que ouve, o que alcança sua boca, sem formar imagens mentais. A criança está presa à experiência imediata, ou seja, à presença física dos objetos. Os esquemas (modos de agir) que se desenvolvem são todos esquemas de ação: olhar, agarrar, morder, e assim por diante.
Nessa fase, predomina a assimilação que começa com o exercício dos reflexos (sucção, preensão etc.). O exercício dos reflexos sobre objetos variados permite que eles possam ir se diferenciando. Por exemplo, o reflexo da preensão, transforma-se em diversas formas de agarrar e pegar. Os objetos são assimilados ao reflexo (capacidade inata e repertório que a criança já traz consigo) e acomodam-se, gerando mudanças no organismo e novas possibilidades para a musculatura da mão etc.
Outra característica importante desse período é a presença do que Piaget chama reações circulares. Estas reações se apresentam quando percebemos procedimentos que se repetem seguidamente. Por exemplo, quando um bebê, para fazer durar um espetáculo interessante, como balançar um móbile, agarra o cordão sobre seu berço e faz balançar o móbile, repete isso diversas vezes. Mais tarde, para tentar resolver um problema novo (como pegar algo que está em cima do móbile), poderá tentar aplicar o procedimento conhecido aos objetos que ali se encontram, ocasião em que novas condutas podem aparecer. A criança vai aplicando os esquemas de ação já conquistados ao universo de objetos  que  compõem  sua  realidade,  assimilando-a  e  modificando-se  nesse contato, ou seja, acomodando-se à realidade física e material à sua volta.

Procure observar por alguns minutos uma criança em torno de 9 a 12 meses brincando com alguns objetos e registre suas ações, buscando fazer relações com as ideias piagetianas.
*       O período pré-operatório caracteriza-se pelo aparecimento das primeiras representações/imagens mentais. Para Piaget, é nesse período que tem início o processo de socialização da criança e a linguagem, antes ausentes. Entre 3 e 6 anos, mais ou menos, os antigos esquemas de ação são transformados em esquemas representativos, isto é, os objetos sofrem não só a ação física da criança, mas também a ação mental. Uma caixa transforma-se num carro, um cabo de vassoura num cavalo etc. Além disso, a linguagem oral progride muito, tornando possível empregar expressões socialmente convencionadas e não só expressões muito particulares (a criança vai substituindo por exemplo a palavra totó por cachorro).
Nesse período, tem início a atividade simbólica, que se caracteriza pela capacidade da criança de tornar presentes objetos e pessoas ausentes, através da imitação e do faz de conta. Ela brinca de ser a mãe quando está na escola, brinca de ser a professora quando está em casa; transforma uma almofada em um boneco-bebê, o qual alimenta e faz dormir.
Ao mesmo tempo,  aparece  a  possibilidade  das  primeiras  trocas  verbais  e relacionamentos sociais, enriquecidos pela fala compreendida por todos os  participantes  daquele  contexto  cultural.  Isto  significa  que  os  esquemas representativos vão se adequando cada vez mais ao meio social em que a criança vive, possibilitando a conversa e o entendimento social.
Esse período recebe o nome pré-operatório porque se caracteriza pela ausência de operações mentais. Uma operação é constituída pela possibilidade de reversibilidade, o que as crianças pré-operatórias ainda não possuem. Podemos constatar isso se colocarmos um litro de água num tubo fino e alto e depois passarmos a mesma água para outra vasilha, dessa vez baixa e larga. Nós, adultos, constatamos que se trata da mesma quantidade, porque vemos a transferência do líquido e porque somos capazes de mentalmente fazermos a operação inversa (da vasilha para o tubo novamente). Mas uma criança de 4 anos pode confundir a quantidade de água, dizendo que no tubo há mais água porque ele é mais alto.
Outro exemplo:  se  apresentarmos  à  criança  uma  bola  grande  de  massa  de modelar  e  depois  partimos  a  mesma  bola  em  vários  pedacinhos  pequenos, colocando-os um ao lado do outro, provavelmente a criança afirmará que há mais massa no conjunto de pedacinhos do que na massa inteira, porque ela ainda não é capaz de refazer o caminho mentalmente (dos pedacinhos para a bola grande de novo). Nós, adultos, constatamos que se trata da mesma quantidade, pois somos capazes de perceber a reversibilidade.
Assim, podemos dizer, a partir da teoria de Piaget, que a lógica das percepções predomina sobre as operações mentais e a lógica mental nas crianças de até 7 anos. Por isso, diante da pergunta “por que chove?”, ela pode dizer que alguém está chorando no céu. Ou “por que o copo caiu na cozinha?”, ela diz que é porque ela fez uma bobagem na sala. Para Piaget, neste momento, há uma assimilação deformada da realidade ao eu da criança.

Lev S. Vygotsky nasceu na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (hoje a Rússia) no ano de 1896. Estudou Direito e atuou como crítico literário. A formação de Vygotsky foi ampla e diversa, englobando, de forma especial, o campo da arte e da cultura.
Vygotsky, em suas pesquisas na área da Psicologia, buscava compreender como o sujeito torna-se capaz de produzir símbolos, ou seja, a linguagem, que lhe permite organizar-se na realidade e comunicar-se.
Entendia que o homem se diferenciava dos animais, pois, além de usar instrumentos do mundo físico, ou seja, ferramentas materiais para otimizar sua relação com o mundo, também fazia uso de instrumentos psicológicos, os símbolos, nessa relação. Considerava como instrumentos materiais, por exemplo, o machado, que ajudava a cortar árvores e a vasilha que ajudava a carregar água, e como instrumento psicológico toda a realidade simbólica criada pelo homem com a finalidade de organizar-se internamente (a criação de marcas para controlar a passagem do tempo (o calendário), códigos escritos para garantir a comunicação etc.).
Alguns animais, como os chipanzés, após um treinamento, são capazes de utilizar varas, ou um banquinho para pegar frutas numa árvore alta. Mas diante de novos problemas e situações não são capazes de criar novas estratégias para resolvê-los. Já os seres humanos, além de utilizarem instrumentos para modificar a realidade externa (pegar objetos, afastá-los etc.), também são capazes de criar outros tipos de instrumentos, os símbolos, para modificar a sua realidade interna, ampliando a memória, a comunicação e a possibilidade de planejar ou antecipar novos problemas.
A linguagem de uma criança não é uma criação solta, espontânea, mas produz-se na relação estreita com o contexto social que ela faz parte. Ou seja, as formas de organizar-se no mundo relacionam-se com o grupo social ao qual pertence. As primeiras palavras e significados chegam à criança através dos adultos de seu meio social.
Vygotsky propõe que o interpsíquico torna-se aos poucos intrapsíquico. Isso significa que as formas de comunicação e as palavras que constituem a cultura da criança, circulando em seu meio social (interquer dizer entre os homens), tornam-se suas próprias palavras e formas de comunicação (intraquer dizer dentro dela mesma). Isso não quer dizer que a criança reproduza passivamente os modos de interação do seu grupo social, mas que os recria com suas ações. Ou seja, toma o que é marca social do seu grupo e refaz esses códigos de uma forma particular. O comportamento novo que surge numa criança nunca é fruto do nada, mas nasce do velho, isto é, da recombinação de suas experiências acumuladas, as experiências que formam seu grupo social.
Para exemplificar, Vygotsky falava sobre como nascia o gesto de apontar. Para o autor, primeiramente a criança se esforça para pegar o objeto que esta fora de seu alcance, num local alto, por exemplo. Então, o adulto pergunta: “É aquilo que você quer?”. Essa sinalização do adulto faz com que, em outras circunstâncias, a criança aponte quando quer algo. A tentativa de pegar transforma-se em apontar, através do significado que o adulto dá à situação. O gesto passa a ser usado em diversas outras ocasiões de uma forma particular que a criança cria.

Observe uma criança por volta de 2 anos começando a falar. Como surgem as primeiras palavras? Como se dá a relação com os adultos nas interações em que aparece a fala?
Podemos observar, também, o processo de recriação da realidade compartilhada, quando pedimos que a criança crie uma história. Provavelmente, ela vai buscar personagens que já conhece ou situações de outras histórias familiares, ou mesmo de sua própria vida, combinando-as de novas formas e fazendo a sua história.
Na teoria do desenvolvimento humano proposta por Vygotsky, é muito importante o papel do outro, seja esse outro uma criança ou um adulto. De acordo com o autor, quando buscamos avaliar o desenvolvimento de uma criança pelo que ela já é capaz de resolver sozinha, acabamos por ter uma ideia distorcida de suas reais capacidades, pois, certamente, ela poderá fazer muito mais coisas se tiver o auxílio de um adulto ou de companheiros mais capazes.
Por exemplo, pode ser que duas crianças da mesma idade não saibam ainda amarrar os seus próprios tênis sozinhas (de forma espontânea e independente, o desenvolvimento das duas é equivalente com relação a essa tarefa). Mas, com um adulto do lado dando algumas dicas, uma delas rapidamente consegue amarrar, enquanto a outra não. Numa próxima tentativa, a criança que foi capaz de finalizar a tarefa com ajuda, provavelmente irá realizá-la sozinha. Isto quer dizer que as competências da criança, com ajuda, revelam o processo do seu desenvolvimento, aquilo que está quase fazendo sozinha.
Para Vygotsky a criança não passa a ser social com o desenvolvimento. É um ser social desde que nasce e, ao longo do desenvolvimento, vai negociando os significados dos objetos e das palavras com os parceiros de seu contexto cultural.
Por exemplo, quando imita a mãe numa brincadeira de faz de conta, a criança fala como se fosse a mãe, apresenta gestos e posturas mais desenvolvidos do que ela, criança, é na realidade. Quando volta ao seu lugar cotidiano de criança, ela volta diferente, pois incorpora algo do que imitou. Assim, também quando busca o modelo de um amigo mais velho para fazer um desenho, reproduz o traço do outro e, em seguida, coloca algo diferencial que marca sua própria produção.
Para nós, professores(as), o grande valor dos conceitos de Vygotsky está nas interações sociais. A valorização das trocas entre as crianças de um grupo e de grupos diferentes (de diferentes idades e momentos evolutivos) serve como incentivo no desenvolvimento de cada uma. Por isso a importância do trabalho em subgrupos na igreja, das conversas em que se compartilham experiências, em que cada um expressa suas conquistas para o outro, contribuindo com o processo de desenvolvimento do amigo.

Wallon nasceu em 1879 na França, Europa. Foi psicólogo e médico, trabalhando com pessoas sobreviventes da Primeira e Segunda Guerra Mundial. Em suas pesquisas, buscava compreender a base orgânica e cerebral das funções psíquicas que investigava. Interessava a ele saber onde se localizava na mente material, no cérebro, funções tais como a memória, a afetividade, o comportamento social.
A partir das ideias elaboradas por Wallon, podemos entender que, na base orgânica do corpo humano, o Sistema Nervoso, as conexões cerebrais modificam-se à medida que o ser humano relaciona-se socialmente. Por exemplo, as regiões do cérebro do bebê se ampliam e mudam suas funções de acordo com as interações sociais nas quais o bebê está envolvido (conversa da mãe com ele, colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas etc.).
Por isso, Wallon afirmava que o ser humano é organicamente social. Cada sujeito humano se torna o que é, constitui sua identidade e seu conhecimento, nos relacionamentos sociais. Somos sujeito a partir do outro, pela mediação do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca entre nós e o mundo, para organizar a nossa relação com ele. Nesse ponto, as idéias de Wallon se aproximam muito das idéias de Vygotsky.
Wallon propôs três centros que se entrelaçam diferentemente ao longo do desenvolvimento da criança: a afetividade, a motricidadee a cognição. Num período inicial do desenvolvimento no recém-nascido, predomina a afetividade (a inteligência ou cognição não se separa da afetividade). É o período denominado por ele como impulsivo-emocional (até 2 anos).
O bebê tem seus reflexos e reações corporais interpretados pelos adultos do seu meio (“está com fome”, “está querendo sair do colo”, “esse choro é quando ele quer água”). Ao longo desse período, os movimentos e reflexos impulsivos tornam-se  comunicativos,  pois,  nas relações, o bebê passa a expressar-se para  obter  respostas  e  contatos  dos adultos.  Para  os  bebês,  as  primeiras manifestações, centradas nele mesmo, ao serem interpretadas e respondidas, vão  se  tornando  manifestações  comunicativas, relacionais. De qualquer forma, neste  momento  a  orientação do bebê é interna, voltada para o eu corporal, sendo pouco afetada pelos objetos do mundo físico e mais pelos contatos humanos.
Podemos dizer que há uma indiferenciação original, ou seja, o bebê não discrimina o que é ele e o que é o mundo, a mãe, os objetos. Aos poucos, mergulhado nas interações sociais, vai surgindo uma diferenciação. Quando o adulto se relaciona com o bebê dizendo “você é esse”, quando brinca de sumir e reaparecer atrás de um pano, quando nomeia as coisas e ações do bebê, quando o toca, olha e sorri, contribui na sua discriminação naquela realidade – o que é o bebê, o que é o mundo (objetos, mãe, pai etc.).
Portanto, a afetividade, isto é, a possibilidade de afetar e ser afetado nas relações, predomina nesse momento. Nesse processo, Wallon reconhece algo como um “diálogo tônico”, ou seja, uma espécie de conversa entre o bebê e o adulto por intermédio não só das palavras, mas do tônus corporal, da expressão facial, dos gestos, do contato físico.

Vamos ver estes trechos de um conto de Clarice Lispector, denominado “Menino a bico de pena”:

“(...) ei-lo sentado no chão , imerso num vazio profundo.
Da cozinha, a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com atenção inteira para dentro: todo seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. (...)
E na parede o retrato de “O menino”. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou (...).
Ele pensa bem alto: menino.
– Quem é que você está chamando? – pergunta a mãe lá da cozinha.
Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. O teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo. E, como ele não pode mais de cansaço, começa a revirar as pupilas até que estas vão mergulhando na linha de horizonte dos olhos. Fecha-os sobre a última imagem, as grades da cama. Adormece esgotado e sereno. A água secou na boca. A mosca bate no vidro. O sono do menino é raiado de claridade e calor, o sono vibra no ar. Até que, em pesadelo súbito, uma das palavras que ele aprendeu lhe ocorre: ele estremece violentamente, abre os olhos. E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe.
O que ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio, ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe. (...)
Mãe, sim é mãe com fralda na mão. A partir de ver a fralda, ele recomeça a chorar. – Pois se você está todo molhado! A notícia o espanta, sua curiosidade recomeça, mas agora uma curiosidade confortável e garantida. Olha com cegueira o próprio molhado, em nova etapa olha a mãe. Mas de repente se retesa e escuta com o corpo todo, o coração batendo pesado na barriga: fonfom! reconhece ele de repente num grito de vitória e terror – o menino acaba de reconhecer!
– Isso mesmo!, diz a mãe com orgulho, isso mesmo, meu amor, é fonfom que passou agora pela rua. Vou contar para o papai que você já aprendeu.”

Na leitura do texto de Clarice, que relações podemos fazer com o que Wallon fala sobre o processo de diferenciação da criança? Nestas cenas do conto, como o bebê vai reconhecendo a si mesmo e o mundo em volta?
É na relação com a fala e movimentos dos adultos que a criança vai entendendo quem é ela e quem é o outro. O processo de imitação tem um papel importante nesse momento. Quando faz algo igual a alguém, quando busca imitar a palavra dita pela mãe, quando imita o jeito da avó esconder um boneco embaixo da fralda, a criança ganha novos movimentos e vai inserindo em seu repertório a possibilidade simbólica, ou seja, a capacidade de representar ações e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua visão presente.
Conforme os movimentos se expandem e desenvolve-se o pegar, o andar e o deslocar-se no espaço, também aparecem os movimentos simbólicos. Trata-se do que Wallon denomina primeiros ideomovimentos, característicos do período sensório-motor projetivo(entre 2 e 4 anos).
Wallon propõe que o ato motor, o deslocamento do corpo no espaço com cada vez mais desenvoltura e segurança, gera o ato mental. As primeiras ideias mentais das crianças nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianças pequenas (de 3 anos, por exemplo) brincando, é comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Também, quando desenham, só conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e não antes. Ou seja, as palavras que retratam as ideias surgem nas relações e ações no espaço.
Nesse período, aos poucos, a intensa motricidade vai sendo inibida pelo ato mental, pelo  funcionamento  cognitivo.  Na verdade, o  ato  interioriza-se, desloca-se de fora, do motor, ligado aos objetos físicos, para o mental, ligado à atividade interna da criança. Sendo importante lembrar que ato motor e ato mental relacionam-se intimamente.
Tente acompanhar uma criança de 3 anos desenhando algo que ela escolha. Pergunte o que ela fará (o que está desenhando) e descreva o que acontece.
É importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas não deixa de ser atividade corpórea. Começa a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um lugar maior, à medida que a criança mexe menos músculos para realizar tarefas. No entanto, Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de função tônica do movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Então, há dois tipos de atividade corpórea: a cinética, responsável pelo movimento, deslocamento, mudança de posição e a atividade tônica, presente na imobilidade e responsável pela expressividade.
Para Wallon, pensamos com o corpo em sentido duplo: com o cérebro e com os músculos que estão em franca atividade tônica, enquanto nosso corpo está visualmente parado. O artista/escultor Rodin capturou bem em suas obras a expressividade da atividade tônica. Vejamos sua escultura denominada “O Pensador”.

Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o período personalista. Esse momento caracteriza-se por um intenso negativismo da criança. É como se ela tivesse como resposta para tudo o não e a rebeldia. Na verdade, quando diz tantos nãos, criança está na busca de afirmar o que quer, ou quem ela é, opondo-se ao que lhe apresentamos. É como se, pela expulsão do que há de alheio dentro de si, a criança pudesse construir o seu eu. Muitas vezes este processo de individualização ocorre mediante conflitos, brigas, o que faz parte do desenvolvimento nesse momento.
A percepção de si, de seus movimentos, conquistas da etapa anterior, dão lugar a uma consciência de si cada vez maior por parte da criança e uma independência que se fortalece. Faz parte desse momento, também, algo que parece oposto ao negativismo, mas complementa-o: a imitação. Ao mesmo tempo em que nega o adulto, a criança busca imitá-lo, tendo como objetivo ampliar suas próprias competências através da reprodução do modelo.
Na verdade, a criança também busca, nessa etapa, a admiração do adulto que se relaciona com ela, no sentido de fortalecer o eu ainda em construção, de ser valorizada sob o olhar do outro. Por isso, também não é pouco frequente que faça gracinhas, oferecendo-se em espetáculo para seduzir, ser admirada e reconhecida.

Por fim, Wallon descreve o último período como período categorial(a partir dos 7 anos). Nesta fase, o domínio cognitivo oferece as bases para que se desenvolvam as ações mentais de explicar, definir e diferir objetivamente o mundo. Tendo já uma diferenciação interna constituída, a criança se volta para o mundo  a fim de compreendê-lo, explicá-lo e conquistá-lo.

Fonte: Coleção PROINFANTIL.  MEC. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação a Distância, 2005.

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